segunda-feira, 23 de maio de 2011

Desintoxicação

Samantha tinha olhos castanhos e era baixinha. Não era criança, embora alguns assim preferissem que ela fosse: a mesma menina linda de cachos nos cabelos e sem histórias ruins para contar. As amigas de sua mãe e o padeiro da esquina ignoravam, mas já fazia tempo que Samantha havia deixado os cachos e passava a colecionar na cabeça as incoerências típicas das gentes grandes.
A moça gostava de gastronomia, de um bom papo e de cafuné. Mas nem sempre esses elementos combinavam. Há alguns meses ela percebia que o cafuné ainda era bom, mas o papo começava a murchar, flor sem água, rio que não flui. Palavras em mão única, chegando a um beco confuso e sem saída.
Em Samantha, as palavras entravam feito comida, caiam no estômago e faziam-na imediatamente feliz ou amuada. Ela não sabia quando foi que as palavras azedaram, mas nos últimos tempos escutava nãos desanimados quando fazia um convite. Engolia cobranças e acusações e deparava com menosprezos cotidianos: rugas de desamor. Não escutava eco, quando expressava seus pensamentos mais profundos. Quando as suas ideias mais íntimas fizeram com que ela se sentisse uma estranha, não aguentou.
Foi difícil ficar sem Tomás. Os cabelos da moça sentiam a falta das mãos grandes, macias e habilidosas que costumavam afagar suas ideias e enfeitar suas memórias. Sem Tomás, as paisagens acinzentavam.  As lembranças vinham acompanhadas sempre da mesma melancolia corrosiva. Nos dias mais tristes, Samantha torcia para nunca mais experimentar um cafuné bom.
Quanto mais a moça encolhia seu amor, mais ele assediava sua memória. Tomás não tinha sido sempre aquele homem de palavras enganadas. Por um bom tempo, ele escolhia as frases certas para dizer e para calar. Quando o pai de Samantha morreu, Tomás ofereceu poucas palavras, deixou a dor e o corpo de Samantha se alojarem em seu peito. Dividiu a tristeza e foi, devagar, multiplicando afetos.
Eles compartilhavam também dessas bobagens de namorados. Os dois gostavam do mesmo pão de milho do seu José, saído do forno da padaria às 17h, com presunto e geleia de morango. Acompanhava um DVD qualquer de suspense. Samantha aproveitava as cenas de medo para perder-se no corpo de Tomás. Aos sábados, o moço cultivava sua mania pelas ruelas secretas do bairro e levava Samantha para lugares que só ele conhecia, como o sebo do Carlão. Passavam tempo xeretando as anotações e dedicatórias dos livros, tentando imaginar o perfil de seus antigos donos: “Para Solange, que me fez experimentar novos sabores! Luciano”.

- Olha, Tomás, é um livro de receitas! Acho que esse Luciano era um cara que vivia de ovos mexidos e um dia descobriu essa lasanha de alcachofra. Lembra daquela cena de A Vida Secreta das Palavras, quando a enfermeira para de comer peito de frango com arroz branco e experimenta pela primeira vez um nhoque?
- Acho que essa Solange devia ser daquelas mulheres fartas, amantes das porções generosas de manteiga. Acho que ela era parecida com você!
- Está me chamando de gorda, é?

Saíram rindo, mãos provocantes brincando. Naquela tarde, Samantha e Tomás descobriram uma casa de crepes, que ficava no fundo de uma loja, numa ruela estreita do bairro. Na cozinha, crepes de limão siciliano eram deitados em pratos sem regra, cada um numa estampa e cor. O espaço se fingia de displicente, com suas duas mesas antigonas de madeira, num pátio cercado por trepadeiras verdes e pedriscos no chão. Samantha deliciava olhos e boca com os novos achados.
Por tantos motivos, Tomás não podia ser apagado com qualquer borracha. Mas ao lado dele, a infelicidade de Samantha começou a crescer. A moça se esvaziava de vontades. E quanto mais vazia ela ficava, menos Tomás conseguia satisfazê-la. Precisava ter os olhos de Tomás pousados na sua pele para sentir-se bonita. As palavras que saíam da boca de Tomás eram as únicas capazes de apaziguar seu estômago. Sem notar, parou de escolher seus passos. Sombra não escolhe, sombra caminha atrás. E quanto mais Samantha se diluía em sombra, menos amor Tomás tinha para dar.
Depois de semanas sem vontade, Samantha decidiu matar o amor. Parou de visitar os becos preferidos. Inventou projetos úteis e inúteis. Rejeitou memórias insistentes e deliciosas. Fez tanto até que seu amor foi soterrado. Espalhou terra por cima. Pisoteou. Não ligou que as memórias fossem enterradas vivas. Sem ar, ficaram paralíticas.
A moça está de quarentena. Não sabe se experimentará de novo na vida um cafuné como aquele. Mas não tem ainda forças para se questionar.

- Oi seu José, vê quatro pãezinhos, por favor.
- Não vai o pão de milho hoje?
- Hoje não, seu José.

Seu José acompanha, com o olhar, Samantha saindo da padaria. Só uma menina.