quinta-feira, 30 de junho de 2011

Botão

O acidente não gritou. Chegou sem escândalo. Simplesmente se instalou, silencioso.
O dia anterior... o momento anterior... perderam-se feito vento, pó de lembrança soprada sem anestesia.
Se pudesse... Fato é que no início nenhum acidente parece permanente. Marta mesclava angústias e esperanças. Pensava que aquilo seria apenas um momento. Tudo voltaria logo a ser o que era. Afinal, quem disse que a vida muda desse jeito, sem consentimento?
E a vida muda. Marta muda. Mundo mudo.
Não, o mundo não era mudo. Marta precisava aprender a ser. Como expressar o que existia dentro dela com gestos? Bem nesses tempos, em que nem as palavras têm força, o que se dirá de um gesto atrapalhado? Logo Marta, a moça da floricultura que tinha sempre suas palavras caminhando à frente.
Não há dúvida de que ela combinava com a floricultura: cheiro de orquídea que invade sem culpa os sentidos. Marta acreditava e fazia os clientes acreditarem que existia a flor certa para cada ocasião. Conhecia os clientes antigos, seduzia os novos. Vivia cada dia como em estado de paixão, que parece não permitir escolha. Intensa. Marta era assim.
Acidente vascular cerebral, afasia, hemisfério esquerdo, reversão. Acidente vascular cerebral, afasia, hemisfério esquerdo, reversão. As palavras passavam feito filme que reprisa sem constrangimento, por todo o dia. Também pela noite e pelas horas que se atrasavam a rodar, relógio encalhado num tropeço da vida.
Marta não sabia ainda como, mas tinha que voltar à rotina. Pensava sobre o que seria dos diálogos. Estava muda de sentidos.
Precisou contratar um auxiliar, que teria voz junto aos fornecedores, às encomendas, ao desejo por cores e perfumes. Mas e a Marta que conhecia os jeitos e desejos dos clientes e podia realizá-los com poucas palavras? E a Marta que fazia da loja uma sala de estar? E a Marta que fazia sua voz espalhar por todo o salão numa poeira de afago?

Uma vez Helena veio comprar flores para a filha, que completava 15 anos. Enquanto Marta ajudava-a na escolha de rosas, orquídeas e liseantus, Helena contavam histórias da filha e confidenciava decepções. Marta achava, equivocadamente, que abrir corações era propriedade exclusiva das flores.
- A Melissa está feliz com o aniversário?
- Sim, mas queria uma festa maior, daquelas festas que estão voltando à moda, com direito a baile e vestidos caros. Mas não podemos arcar com isso. Sabe, é difícil contentar um adolescente.
- É verdade!
E Helena continuava:
- Quando eu era adolescente éramos felizes em casa. Às vezes, meu pai trazia doces da padaria e isso já era motivo pra gente fazer uma festa.
Marta se lembrou das brincadeiras no caquizeiro do sítio dos avós. Nada melhor do que as férias na casa dos avós. A meninada sempre esperava a hora da história, antes de dormir. Marta se deitava com os irmãos na cama de casal e a avó ficava no meio dos três. Lia um livro ou contava história inventada e vivida. Não importava que as histórias se repetissem, que os livros fossem os mesmos, que as noites não fossem originais. O acolchoado gordo e o chocolate quente ficaram imersos em sua memória de uma maneira que Marta nunca mais provou igual: quentura doce aconchegada por tanta imaginação.
É claro que os personagens já eram íntimos seus e Peter Pan era o preferido, ainda que seu irmão gostasse mais da história de Tião, um macaco safado que fazia malandragens com os vizinhos. Sua avó, então, dividia as noites das férias entre Tião e a Terra do Nunca. Marta precisou crescer para entender que o sítio dos avós era a sua Terra do Nunca e que ela não precisava de Sininho ou de Peter Pan porque tudo acontecia ali, na sua presença, embaixo de árvores que zuniam mel.
Sem notar, o café já fumegava na cafeteira italiana, sobre o fogão elétrico de duas bocas e Helena, sentada na cadeira de madeira e ferro, escutava sobre caquis, Peter Pan e recordava a própria infância. A floricultura de Marta era uma butique pequena, com flores frescas, café e histórias.

No dia em que Marta voltou, sentiu a monotonia do seu silêncio. Uma distância grande se instalou entre o seu cérebro e a sua boca e as frases nasciam defeituosas. A articulação ficou pouca, mas um pouco que nasce com sede de dizer. Sede de deserto.
Depois de alguns meses no caminho arenoso, Marta foi abandonando sua bagagem pesada. Largou alguns rancores. Abandonou necessidades ilusórias de beleza eterna. As unhas impecáveis já não eram tão importantes como fazer os arranjos florais. Outras tantas cismas e preocupações financeiras sobre o futuro também foram deixadas. O futuro passou a ser a coisa mais remota e distante.
Marta não podia falar bem, mas pensava mais que nunca. “Por que se afastando da vida é que a encontramos?”