sábado, 23 de abril de 2011

Fruta Madura

Quando adolescente, meu irmão se deixava contaminar pelas ideias poéticas de qualquer vagabundo iluminado e eu pensava: quanta ilusão ele aguenta carregar até perceber que a vida numa cidade exige emprego e rotina, além de instrumentos musicais e um abridor de vinhos?
A vontade de fazer música e viver numa comunidade esotérica era a fachada despojada, que ele emprestava dos escritores que lia. Mas existia um limite bem fechado em torno do seu despojamento. Sair em uma viagem rústica para experimentar a floresta, como pregavam os despojados, não era coisa para ele. Meu irmão não via graça em estudar botânica e seria a isca mais ridícula para o primeiro matinho venenoso que acenasse lá do chão na hora da fome.
Fora isso, era engraçado quando despertava nele uma vontade consumista louca, como uma vez aconteceu, por uma guitarra e um amplificador de última geração. Ele tentava disfarçar o interesse, jogando a ideia para debaixo do primeiro tapete encontrado. Mamãe não sabia, mas precisaríamos ainda de muitos tapetes em casa para esconder tanto desejo.
Acontece que adolescente quer sempre fugir de alguma coisa e, de preferência, sem ser o mentor da própria fuga. Indolentes, idealizávamos ser sugados para qualquer buraco vazio, sem julgamento e sem solidão.
Aquelas suas e, confesso, nossas ilusões eram tão macias e carentes feito cachorro manhoso pedindo afago. Mas os anos não têm muita paciência para acarinhar ideia desmiolada. Os tapetes da nossa casa foram ficando tão gordos de desejos, que começaram a ganhar volume e curvas. A morte do papai fez com que tropeçássemos.
O Leo tinha 17 e ainda era moleque de tudo e eu tinha 20 e me achava uma mulher. Nem um, nem outro tinha talento para reinventar o futuro sem o seu Antônio.
O Leo vagava como uma criança sem tapete para esconder qualquer saudade e eu queria ser a avó Lucinha para poder aconchegar a mamãe com alguma sabedoria. Não tinha extraterrestre que pudesse abduzir a gente porque nem o vazio oco teria graça. Já estávamos resvalando nele.
Olhei o rosto um pouco redondo do papai e eu queria ser forte para levantar seu corpo e abrigá-lo para sempre comigo. Mas aquilo era uma despedida. E ninguém perguntou se eu concordava. Os primeiros dias seguiram carregando amargor, assim como o nosso hálito sem fome.
Depois passei um tempo sofrendo uma série de despedidas imaginárias. Com a cabeça no travesseiro, lembrava do caixão sem vida e criava a imagem de um caixão que respirava aconchegado pelo mesmo edredom branco que aquecia o meu corpo. Queria que a morte reservasse ao papai a chance de continuar adivinhando a doçura prometida pelos morangos maduros em cada novo inverno. Sonhava em colocar as mãos ainda uma vez sobre os seus olhos fechados e longínquos e fazer curar qualquer dor lembrada. Dormia em prece para que as novas paisagens do papai fossem delicadas como as de um Monet brasileiro, pincelando mais amarelos no lugar de tantos azuis.
Tivemos pouco tempo para acreditar. Fomos acreditando devagar e doído. Quando tocava alguma música de que papai gostava no carro, e a sua voz não a acompanhava, éramos obrigados a acreditar de novo. Às vezes alguém esquecia e colocava um prato a mais na mesa.
Na verdade, eu fico tendo de acreditar até hoje, quando passo em frente à padaria. Naquela esquina tomávamos café da manhã em dias que pareciam especiais, no caminho para a escola, como se aquilo fosse um grande delito cremoso e derretido.
Lembro que a paisagem das nossas ideias foi mudando. Eu não sei se foi de uma só vez, por causa do choque, ou se foi uma coisa gradual, mas parecia que o Leo tinha deixado para trás as ideias zen-esquisitas de pouco dinheiro e muita felicidade. Em seu lugar foi nascendo um olhar sóbrio e guerreiro. Começou a dar duro no Ensino Médio, passou a querer uma profissão, pensou em ser psicólogo. Não sei quem ele queria salvar e nem de quê.
O papai era a cama dos nossos sonhos. A gente sabia que podia alimentar e botar todos eles para dormir no macio porque alguém estava cuidando para tudo dar certo.
Agora quem dormia era o papai. Os nossos sonhos acabavam de perder o paraquedas.

Um comentário:

  1. oi,Sibélia
    Gostei muito do texto, não consegui parar de ler.Vou dar umas passadas por aqui!
    Flavia

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